Saturday, November 27, 2010

O bloqueio metodológico das actuais análises da esquerda radical sobre o "porte na prisão"

Miguel Cardina é um jovem investigador de História da Universidade de Coimbra que tem publicado sobre a "esquerda radical" do tempo da ditadura, isto é, de 1964 a 1974.
É sempre bom que novos olhares se debrucem sobre o passado, reinterpretando-o de forma cada vez mais rica à medida que o tempo decanta o acessório do essencial na História ou, como diriam os maoístas, à medida que o tempo clarifica quais eram de facto "as contradições principais" nesse passado.
Infelizmente, o pensamento da maioria dos nossos investigadores da História da extrema-esquerda continua demasiado dominado pela influência dos "mais velhos" e respectivos preconceitos, sendo por isso raro que produza realmente algo de valor. Receio que seja precisamente o caso de Miguel Cardina e da sua admiração filial para com um velho militante da OCM-LP, Rui Bebiano, que apesar da evolução manifesta que tem tido ainda revela muitos desses preconceitos.

Há poucos meses, Miguel Cardina publicou um artigo sobre a repressão da extrema-esquerda pela PIDE que é um exemplo do que acabo de afirmar.
Cardina, que tenta aqui investigar o comportamento dos militantes da extrema-esquerda quando presos, aborda o problema do seu "porte na polícia", isto é, da forma como (não) resistiam à tortura, tendo para o efeito lido o (pouquíssimo) que há sobre o assunto e tentado entrevistar quem pôde. Mas chega a um beco explicativo que manifesta o bloqueio metodológico a que a sua dependência dos velhos preconceitos comunistas conduz.
Para Miguel Cardina:
  1. Os ex-presos que tentou entrevistar recusam, na maioria, sequer falar do assunto, ou fazem-no de de forma duvidosa, tendo até detectado alguns que mentem convictamente, reportando comportamentos heróicos desmentidos pelos autos que assinaram nos interrogatórios;
  2. O meu minucioso relato do processo de cedência à tortura da PIDE é marginalizado devido à "recusa em comparar o tipo de colaboração activa e voluntária de Pinto de Sá com outros tipos de prestação de declarações na polícia política";
  3. O "relatório Kubark" (que eu trouxe ao conhecimento nacional aqui há 4 1/2 anos) é mencionado, mas sem outras ilações (o original pode ser lido aqui).
Ora se Miguel Cardina não estivesse tão preso ao que Bui Bebiano escreveu sobre o meu livro quando da sua publicação, não repetiria este, como faz quando diz que "O livro-testemunho de Pinto de Sá motivou um dos poucos debates públicos que se conhecem sobre a “questão do porte”, em jornais e blogues, mas sem se ultrapassar, contudo, a chamada de atenção ao carácter compungido do livro e a recusa em comparar o tipo de colaboração activa e voluntária de Pinto de Sá com outros tipos de prestação de declarações na polícia política. De menor alcance, mas instigador de um debate bem mais interessante, foi a publicação no blogue Caminhos da Memória de um longo texto de análise sobre o assunto, da autoria de Diana Andringa, e que deu azo a dezenas de comentários (Andringa, 2009)."

Infelizmente não consegui aceder às "dezenas de comentários" do post da Diana Andringa, mas quanto ao post em si já o conhecia há muito, visto ter sido um trabalho que ela apresentou numa das cadeiras da sua pós-graduação em jornalismo na Universidade Nova e que se baseou nos dados que lhe facultei. É um trabalho honesto, um esforço sincero de tentar compreender, mas que sofre exactamente do mesmo bloqueio metodológico de Cardina: não consegue ligar os 3 pontos que enumerei acima e que, no entanto, têm um nexo evidente!
A essência da questão do "porte na polícia" é simples: era a força das ligações afectivas que se tinham "cá fora" que determinava esse porte! Porque, como explica taxativamente o "relatório Kubark", o objectivo central da tortura era provocar a regressão psicológica, um estado de dependência afectiva infantil em que o torturador acabava por ser visto com simpatia - e é essa experiência íntima, essa cumplicidade afectiva vivida no segredo das salas de tortura, que é inconfessável para os que passaram por ela!
É isso que o meu livro ilustra - não por uma qualquer divagação teórica inconclusiva, como as destes trabalhos, mas pela exposição "experimental" de um caso real. O único disponível, aliás! O único que foi descrito, e de certeza o único que virá a ser descrito!


Por ser uma "descrição experimental", qualquer investigação que se pretenda científica, para mais quando os seus autores prezam o "socialismo científico" de Marx, deveria prestar-lhe mais atenção. Mas é aí que o preconceito ideológico, a velha divisão leninista entre "fraqueza" e "traição", impede que vejam o que está mesmo em frente dos seus olhos!
Na verdade, é um quadro mental estereotipado que estes autores revelam. Falta-lhes a sabedoria bíblica da hatureza humana para poderem compreender (e esta afirmação não é nenhuma manifestação de fé deísta).
Entre outros exemplos de como o preconceito ideológico bloqueia o método de análise de Cardina e de Andringa impedindo-os de chegar a alguma conclusão de valor prático (ou seja, científica), vale a pena mencionar a menção que o trabalho de Diana faz à resistência timorense que "...não rejeitou todos aqueles que em algum caso cederam – mas nem por isso se passaram para o inimigo. Lembram-se de como, quando alguns em Portugal já o acusavam de traição, Xanana Gusmão liderou o processo da independência de Timor?".
É que todos vimos com os próprios olhos um vídeo em que Xanana Gusmão surgia em muito alegre confraternização com os militares indonésios e a afirmar que era indonésio (como os militares pretendiam que os timorenses se considerassem)! Claro que isto foi uma traição, em qualquer avaliação que se faça daquele acto!
E, no entanto, claro que Xanana era "recuperável". Claro que não há colaborações "voluntárias" em situação de prisão e, para mais, de risco de vida!
Na verdade, a distinção entre traição e cedência é ainda pensar à Cunhal dos anos 30, mas felizmente para Timor que quer a Fretilin, quer Guterres que muito se bateu pela libertação dele, não eram leninistas. Porém, Cardina e Andringa (minha conterrânea, mas que nunca na nossa infância se teria dado comigo devido à sua ascendência social superior) continuam presos dessa concepção, por via dessa herança leninista legada por Francisco Martins Rodrigues à "esquerda radical".
Para terminar, e num outro contexto mas que tem afinidades com este, vale a pena recordar como evoluiu a atitude social relativamente às vítimas de actos de pedofilia ou violação.
É sabido que, por difícil que seja aceitar tal facto, muitas dessas vítimas colaboram activamente com os seus abusadores. Até há umas décadas, nomeadamente até ao 25 de Abril, ainda se considerava comumente que isso fazia das vítimas cúmplices, o que por sua vez gerava uma condescendência generalizada para com tais crimes. Hoje, porém, há a noção de que o processo de sedução frequentemente envolvido nesses actos faz parte do abuso, e com a muito mais clara separação entre vítimas e abusadores a condenação social - e penal - destes agravou-se fortemente.
Pelo contrário, e como reconhece Miguel Cardina, no que toca ao "porte na polícia" as suas vítimas continuam a interiorizar o estigma da cumplicidade nos próprios abusos de que foram vítimas e a auto-marginalizar-se da vida política e muitas vezes até da cívica. A PIDE ainda governa.

Friday, July 14, 2006

O "relatório Kubark"

Em 1997 o Governo Americano desconfidencializou o manual de tortura da CIA publicado, internamente, em 1963, e em que obviamente foram instruídos os "técnicos" da PIDE após a crise de Cuba. A aplicação destes princípios, provavelmente a partir da data de encerramento do Aljube e do início do uso sistemático de Caxias como local de detenção e interrogatório (1965), é notória no caso de "Os conquistadores de almas".
Seguem-se extractos muito significativos do referido manual.

IX. Coercive Counterintelligence Interrogation of Resistant Sources
Coercive procedures are designed not only to exploit the resistant source's internal conflicts and in­duce him to wrestle with himself but also to bring a superior outside force to bear upon the subject's resistance. Non-coercive methods are not likely to succeed if their selection and use is not predi­ca­ted upon an accurate psychological assessment of the source.
The changes of success rise steeply, nevertheless, if the coercive technique is matched to the source's personality.
All coercive techniques are designed to induce regression. As Hinkle notes in "The Physiological State of the Interrogation Subject as it Affects Brain Function"(7), the result of external pressures of sufficient intensity is the loss of those defenses most recently acquired by civilized man: "...
One subjective reaction often evoked by coercion is a feeling of guilt. Meltzer observes, "In some lengthy interrogations, the interrogator may, by virtue of his role as the sole supplier of satisfaction and punishment, assume the stature and importance of a parental figure in the prisoner's feeling and thinking. Although there may be intense hatred for the interrogator, it is not unusual for warm feel­ings also to develop. This ambivalence is the basis for guilt reactions, and if the interrogator nour­ishes these feelings, the guilt may be strong enough to influence the prisoner's behavior.... Guilt makes compliance more likely...."(7).
Farber says that the response to coercion typically contains "... at least three important elements: debility, dependency, and dread."
Once a true confession is obtained, the classic cautions apply. The pressures are lifted, at least enough so that the subject can provide counterintelligence information as accurately as possible. In fact, the relief granted the subject at this time fits neatly into the interrogation plan. He is told that the changed treatment is a reward for truthfulness and an evidence that friendly handling will con­tinue as long as he cooperates.
When an interrogator senses that the subject's resistance is wavering, that his desire to yield is growing stronger than his wish to continue his resistance, the time has come to provide him with the acceptable rationalization: a face-saving reason or excuse for compliance.
Therefore the interrogator should intensify the subject's desire to cease struggling by showing him how he can do so without seeming to abandon principle, self-protection, or other initial causes of resistance. If, instead of providing the right rationalization at the right time, the interrogator seizes gloatingly upon the subject's wavering, opposition will stiffen again.
These findings suggest - but by no means prove - the following theories about solitary confinement and isolation:
1. The more completely the place of confinement eliminates sensory stimuli, the more rapidly and deeply will the interrogatee be affected. Results produced only after weeks or months of imprison­ment in an ordinary cell can be duplicated in hours or days in a cell which has no light (or weak ar­tificial light which never varies), which is sound-proofed, in which odors are eliminated, etc. An environment still more subject to control, such as water-tank or iron lung, is even more effective.
2. An early effect of such an environment is anxiety. How soon it appears and how strong it is de­pends upon the psychological characteristics of the individual.
3. The interrogator can benefit from the subject's anxiety. As the interrogator becomes linked in the subject's mind with the reward of lessened anxiety, human contact, and meaningful activity, and thus with providing relief for growing discomfort, the questioner assumes a benevolent role. (7)4. The deprivation of stimuli induces regression by depriving the subject's mind of contact with an outer world and thus forcing it in upon itself. At the same time, the calculated provision of stimuli during interrogation tends to make the regressed subject view the interrogator as a father-figure. The result, normally, is a strengthening of the subject's tendencies toward compliance.
The threat of coercion usually weakens or destroys resistance more effectively than coercion itself. The threat to inflict pain, for example, can trigger fears more damaging than the immediate sensa­tion of pain. In fact, most people underestimate their capacity to withstand pain. The same principle holds for other fears: sustained long enough, a strong fear of anything vague or unknown induces regression, whereas the materialization of the fear, the infliction of some form of punishment, is likely to come as a relief. The subject finds that he can hold out, and his resistances are strength­ened. "In general, direct physical brutality creates only resentment, hostility, and further defiance."
It is especially important that a threat not be uttered in response to the interrogatee's own expressions of hostility. These, if ig­nored, can induce feelings of guilt, whereas retorts in kind relieve the subject's feelings.
It is not enough that a resistant source should placed under the tension of fear; he must also discern an acceptable escape route.
The available evidence suggests that resistance is sapped princi­pally by psychological rather than physical pressures.
The problem of overcoming the resistance of an uncooperative interrogatee is essentially a problem of inducing regression to a level at which the resistance can no longer be sustained.

A brief summary of the foregoing may help to pull the major concepts of coercive interrogation to­gether:
1. The principal coercive techniques are arrest, detention, the deprivation of sensory stimuli, threats and fear, debility, pain, heightened suggestibility and hypnosis, and drugs.
2. If a coercive technique is to be used, or if two or more are to be employed jointly, they should be chosen for their effect upon the individual and carefully selected to match his personality.
3. The usual effect of coercion is regression. The interrogatee's mature defenses crumbles as he be­comes more childlike. During the process of regression the subject may experience feelings of guilt, and it is usually useful to intensify these.
4. When regression has proceeded far enough so that the subject's desire to yield begins to overbal­ance his resistance, the interrogator should supply a face-saving rationalization. Like the coercive technique, the rationalization must be carefully chosen to fit the subject's personality.
5. The pressures of duress should be slackened or lifted after compliance has been obtained, so that the interrogatee's voluntary cooperation will not be impeded.No mention has been made of what is frequently the last step in an interrogation conducted by a Communist service: the attempted conversion. .... If the inter­rogatee remains semi-hostile or remorseful after a successful interrogation has ended, less time may be required to complete his conversion (and conceivably to create an enduring asset) than might be needed to deal with his antagonism if he is merely squeezed and forgotten.